Num conto, tudo acontece mais depressa, mas não com menos profundidade. Um gesto, uma frase, umas ausências bastam para desencadear o movimento. E, quando se dá por isso, já não se está no mesmo lugar.
O conto não se explica, sente-se, capta-se na sugestão, no que ficou por dizer, no pormenor que altera tudo. Talvez por isso nos acompanha com tanta persistência: porque condensa numa tarde o que outros géneros levam semanas a insinuar.
Num país em que a leitura precisa de ser mais cultivada, o conto pode ser a porta de entrada. Uma forma acessível, intensa e desafiadora de reencontrar o prazer de ler. Sem imposições, sem culpa, sem a ideia de que é preciso ter tempo a mais ou saber demais.
Nesta pequena constelação de propostas — de Teresa Veiga a Mário Cláudio, de João de Melo a Valter Hugo Mãe, sem esquecer a potência visionária de Stanislaw Lem —, reconhece-se a vitalidade de um género que está longe de ser menor. São contos que pensam, que ferem, que acolhem; que atravessam o passado e o futuro para tocar o presente com rara nitidez.
Venha conhecê-los melhor.
A escrita de
João de Melo tem raízes bem profundas: os Açores onde nasceu e a guerra colonial em Angola onde serviu como enfermeiro. Da terra insular herda a religiosidade, o mar, o peso da emigração e o silêncio de quem cresce entre fronteiras físicas e afetivas. Da guerra, transporta a memória viva do medo, da perda e da desumanidade. As suas narrativas movem-se entre estes dois mundos, revelando um sentido de desamparo e resistência. Há nelas uma melancolia persistente, feita de saudade da infância e de um desejo de reencontro com a terra, ainda que já transformada pela distância e pelo tempo.
Reunindo textos originalmente dispersos, alguns até agora inéditos em livro, a antologia A Nuvem no Olhar, revê e fixa, numa edição definitiva, a obra breve do autor no género conto. Um exercício de curadoria literária que é também uma viagem ao olhar com que, ao longo de cinco décadas, foi habitando o mundo e a língua.
Três figuras reais, três destinos ficcionados até ao limite da inquietação. Em A Gôndola Negra, Menina Sentada e Os Cães de Hécate, Mário Cláudio convida-nos a entrar em territórios biográficos quase esquecidos, abrindo fissuras na História por onde se infiltram a imaginação, o espanto e a vertigem do irreparável.
É um tríptico de vozes e silêncios: um jovem músico entregue a uma missão impossível, uma artista que nunca pôde ser plenamente autora nem amante, um político exposto num país habituado a desviar o olhar. Mas o que começa como evocação de vidas alheias transforma-se num jogo de espelhos, em que os narradores alternam entre o voyeurismo, a suspeita e a busca desesperada de sentido. Uma jornalista em busca do próximo escândalo; um colecionador prisioneiro das imagens da infância; dois agentes da judiciária que investigam mais do que a lei lhes permite nomear.
Ler estas três novelas é mergulhar num tempo suspenso entre arquivos e fantasmas, onde o real se adensa, mas é a ficção que ilumina o que ficou por dizer. Mário Cláudio expõe-nos àquilo que os seus corpos e ausências ainda podem significar. Uma leitura densa, obsessiva, marcada pela linguagem trabalhada e pela arquitetura literária rigorosa, que nos desafia a estar presentes até ao fim. Mais do que biografias ficcionadas, estas são histórias de sombras e sobrevivência, de figuras que viveram à margem ou caíram em desgraça, e que aqui ressurgem com a densidade, o humor e o fulgor narrativo que Mário Cláudio sabe imprimir a tudo o que escreve.

Nestes três contos longos, Teresa Veiga detém-se no modo como o engano se inscreve nas rotinas mais discretas. Não há grandes confrontos nem revelações dramáticas. Há uma mulher que percebe, sem escândalo, que o marido que tem é outro, filhos que guardam segredos, figuras periféricas que se aproximam, heranças mal resolvidas, leis torcidas, silêncios que se instalam.
Tudo acontece devagar, sem alarde e são as mulheres que falam. Com ironia, clareza, uma inteligência cansada de fingimentos. Teresa Veiga escuta o que quase ninguém escuta, capta o que mal se diz. Na escrita, como nas relações, o mais importante está muitas vezes fora de campo.
Cada conto deixa essa impressão persistente: a de que o mais difícil não é ser enganado, mas entender o papel que se teve no engano.
A escrita de
Valter Hugo Mãe aproxima-se do conto com a delicadeza de quem acolhe: cada história, aberta a leitores de todas as idades, sustenta-se numa esperança serena, nunca ingénua.
Entre a confiança e o receio, cães e lobos surgem como figuras da inquietação. Falam-nos da aprendizagem dos afetos, da escuta, da prudência que nos permite avançar sem nos perdermos. São contos sobre o gesto de cuidar, sobre a intimidade possível, sobre o que é preciso para que a felicidade se torne, mesmo que por instantes, habitável.
Esta obra conta com a participação de vários artistas plásticos, entre os quais a conhecida Ana Aragão, que enriquecem e se conjugam com as palavras.
Ler A Máscara e outros contos é submeter-se a um estranho encantamento. Não porque
Stanislaw Lem construa mundos distantes, mas porque, a cada página, nos sentimos empurrados para dentro de nós próprios.
Entre sátiras mordazes e parábolas filosóficas, o autor de Solaris convoca-nos para experiências-limite, em que seres artificiais desenvolvem consciência, civilizações alienígenas não se deixam compreender e a liberdade é, por vezes, apenas um outro nome para o condicionamento. Há contos que arrancam sorrisos e outros que nos perturbam com perguntas sem resposta.
Lem não escreve para entreter nem para explicar: escreve para agitar e, mesmo passadas décadas sobre a sua primeira publicação, estes contos continuam a ser vislumbres de um futuro possível e, acima de tudo, de um presente inquietante. O autor confirma, conto após conto, o lugar que ocupa entre os grandes autores do século XX.
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O fascínio do conto não está apenas na brevidade, mas na forma como nos desinstala. Porque não exige fidelidade nem tempo infinito, mas impõe atenção total. Pede que se pare, que se escute, que se imagine além da última linha. Precisamos disso.
Lê-se um conto numa tarde, mas fica-se com ele durante muito mais tempo. Como se a sua concisão fosse só uma armadilha para nos deixar mais perto daquilo que importa: um olhar mais agudo, uma escuta mais funda, uma presença mais inteira diante da linguagem e do mundo.
Um conto por dia, nem sabe o bem que lhe fazia.
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