WOOKACONTECE: Baseado numa História Verídica

Muitos escritores sentem a necessidade de olhar para trás, confrontar a infância, os lugares de origem, os traumas, os afetos e as ruturas que moldaram as suas vidas. Usar matéria autobiográfica como base para a escrita, longe de ser apenas um exercício de narcisismo, pode transformar-se numa ferramenta poderosa para entender o presente e, por vezes, reinventá-lo. Também para os leitores, o acesso a esses detalhes pessoais ultrapassa a simples curiosidade e é uma ponte que permite compreender melhor as motivações, os temas recorrentes e as escolhas do escritor, criando uma conexão mais profunda com a obra.
Artigo escrito por Zé Livreiro@confissoesdumlivreiro




Uma Educação é um mergulho brutal e luminoso numa infância à margem do sistema. Tara Westover nasceu nos anos 80, numa família mórmon radical, nos confins das montanhas de Idaho, onde a escola, os médicos e o governo eram vistos como inimigos. Viveu durante anos sem certidões, vacinas e aulas porque os pais acreditavam que a vida se resumia a trabalho árduo e cumprimento da doutrina religiosa. Mas Tara, ainda adolescente, descobre nos livros e no desejo de aprender uma saída para uma vida que parecia pré-determinada, e inicia uma longa travessia que culmina no acesso à universidade, onde é confrontada não apenas com o mundo exterior, muito diferente daquele que lhe foi apresentado pelos pais, como com a sua própria identidade, que entra em rutura. Este livro é um testemunho pungente acerca do processo doloroso e difícil de desaprender medos, e um relato corajoso de como a educação pode ser um ato de sobrevivência e, acima de tudo, de libertação do ser em relação ao meio que o sufoca.



Gabriel García Márquez foi o vencedor do Prémio Nobel da Literatura, em 1982, e deu a conhecer ao mundo um género literário que ele ajudou a criar. O realismo mágico revolucionou a literatura da América Latina e continua, até hoje, a ser uma característica vincada da produção literária dessas latitudes. O seu impacto deixou um lastro que tem vindo a inspirar autores das mais diversas geografias, como é o caso de Murakami, Salman Rushdie, Can Xue e, numa dimensão diferente, Mia Couto. É óbvia a influência de Juan Rulfo na escrita de Márquez, especialmente na forma como ambos criam narrativas que dilatam os limites da verosimilhança e integram elementos do folclore e da magia popular.
Mas a vida de Gabo foi uma tempestade perfeita de histórias à espera de um escritor que as contasse da melhor forma, e ao lermos Viver para Contá-la, a sua autobiografia, tomamos consciência disso. No livro, o autor de O Amor nos Tempos de Cólera escreve sobre a infância passada em casa dos avós, em Aracataca, povoação que serviria mais tarde de modelo para a criação de Macondo, centro da narrativa de Cem Anos de Solidão; sobre o surgimento da sua vocação literária, as visões políticas e relações pessoais que teve durante a vida. Nesta obra, é fácil fazer paralelismos entre realidade e ficção, e conseguimos perceber de que forma factos verídicos interferem na escrita e passam, depois de absorvidos, a fazer parte de um universo inventado.



Stefan Zweig, escritor austríaco do século XX, viu ruir a Europa em que acreditava, um continente de progresso, cultura e liberdade, com a ascensão de Hitler e de outros regimes totalitários. Ao longo das páginas de O Mundo de Ontem, assistimos à fuga física e sentimental de um homem desiludido e fragilizado. Inicialmente, foge para Inglaterra, mas ao aperceber-se da escalada de Hitler por todo o continente, decide exilar-se no Brasil, que ele acreditava ser o país do futuro. Mais do que um relato histórico e social, este livro é uma carta de amor a um tempo e a um espaço que já não existem. A escrita nostálgica e melancólica do autor de Amok e Novela de Xadrez ajuda-o a narrar o progressivo colapso de um mundo que parecia eterno e imperturbável. Zweig nunca mais voltou à Europa e acabou por suicidar-se no Brasil, convencido de que a barbárie, o medo, os nacionalismos e o ódio tinham triunfado sobre os ideais de liberdade e solidariedade entre os povos. Esta obra, publicada em 1942, continua cada vez mais atual.



Antes de se lançar no universo ficcional com A Gorda (2016) e Um Cão no Meio do Caminho (2022), Isabela Figueiredo escreveu Caderno de Memórias Coloniais (2009), um testemunho íntimo e cru sobre o fim do colonialismo português em Moçambique e consequente regresso de milhares de famílias para Portugal. Os vários textos que compõem este caderno são um ajuste de contas com o passado, com a infância e com o silêncio que pautou muitos momentos da vida de Isabela, que regressa a Portugal, no pós-25 de Abril, bastante jovem, e encontra um país que proclama mais liberdade e igualdade, uma realidade muito diferente daquela a que estava habituada em Moçambique, num meio carregado de racismo, sexismo e violência normalizada contra o povo africano. A autora sofre também com a ideia que a sociedade portuguesa tem dos retornados, os «portugueses de segunda». Sem medo de chocar, Isabela Figueiredo decide contar episódios da sua vida e da sua relação familiar com uma sinceridade desconcertante.



Paul Auster tem uma bibliografia extensa que não se limita à ficção. Muitos dos seus livros centram-se na sua própria vida, com destaque para os anos de formação, a educação e episódios que ajudam a compreender aspetos fundamentais da escrita do autor de Timbuktu, bem como os temas presentes nos seus romances. De todos os livros de pendor mais autobiográfico, Relatório do Interior (2013) é o mais intimista e honesto. Narrado sobretudo na segunda pessoa do singular, cria um diálogo interessante e inovador entre o narrador e o personagem da ação que, sendo a mesma pessoa, é observado com a distância crítica de quem se interroga a si próprio. Em vez de se concentrar nos grandes acontecimentos da sua vida, já explorados em Diário de Inverno, publicado no ano anterior, Auster explora as pequenas experiências formativas, as emoções difusas da infância e os momentos de revelação que moldaram a sua maneira de ser. O resultado é uma obra comovente e subtil, onde a memória não serve apenas para recordar, mas também para compreender o modo como o interior de um homem, e de um escritor, se constrói.