Há livros que não se leem. Permanecem. Instalam-se na mesa de cabeceira com um ar de continuidade discreta, como se fizessem parte do mobiliário emocional. Não são propriamente “livros em leitura” nem “livros por ler”. São objetos simbólicos, carregados de intenções, hesitações e expectativas. Como relíquias silenciosas daquilo que se deseja ler — mas raramente se lê.
Esta presença constante deu origem a um fenómeno não documentado nos manuais de biblioteconomia, mas amplamente reconhecido entre leitores compulsivos: a síndrome do livro da mesa de cabeceira.
Pode apresentar-se de várias formas. O clássico dos clássicos é o livro de autor consagrado e de reputação intimidante. Um Pirandello, um Bulgákov, um Edgar Allan Poe. São livros que tanto nutrem o espírito como refletem o gosto e a sensibilidade intelectual de quem os lê.
Depois, há os livros de autoajuda. O Poder do Agora, Manhãs Milagrosas. Títulos que prometem iluminar a existência em poucas páginas. São colocados na mesa de cabeceira como amuletos de desenvolvimento pessoal. O simples facto de estarem ali transmite a ideia de que se está “num caminho de evolução”, mesmo que esse caminho não avance para lá do índice.
Segue-se a categoria dos livros-presente. Poesia? Os que foram oferecidos com carinho — ou com culpa — e que, por respeito ao gesto, se mantêm em exibição constante. Não se leem por afinidade, mas por obrigação afetiva.
Existem ainda os livros-temporada. Títulos que chegaram em momentos específicos — separações, mudanças de vida, desafios existenciais — e que, apesar de ultrapassada a fase, permanecem como lembrança. São livros que se transformam em âncoras emocionais: não servem tanto para serem lidos, mas para recordar quem se era quando se pensou iniciar a leitura.
E depois, há os livros utilitários: dicionários, antologias, devocionários, agendas literárias. Livros que se usam pontualmente, mas que, na prática, acumulam pó em repouso quase litúrgico.
A síndrome manifesta-se também na forma como se lida com esses livros: vira-se a lombada para a frente, empilha-se com cuidado, muda-se de lado conforme a disposição da luz ou do copo de água noturno. Há quem mantenha um marcador entre as páginas há mais de um ano, na esperança de retomar a leitura «assim que houver tempo». O marcador é um gesto de fé.
O que estes livros têm em comum é que não incomodam. Não pressionam. Não exigem. Estão ali como promessas de uma versão mais atenta, mais culta ou mais organizada de quem os colocou ali. E é talvez isso que mais importa: o livro da mesa de cabeceira não é apenas um livro, é um espelho. Revela padrões, expectativas e até frustrações.
O leitor que acumula livros de espiritualidade revela uma busca de sentido. O que coleciona romances históricos de 500 páginas pode estar à espera do momento «certo» para mergulhar com tempo. O que tem um compêndio técnico provavelmente sonha com uma versão mais disciplinada de si mesmo. E o que tem uma pilha eclética, em permanente desequilíbrio, talvez seja alguém dividido entre múltiplos interesses e incapaz de fazer escolhas definitivas.
Curiosamente, poucos desses livros acabam por ser lidos até ao fim. A mesa de cabeceira transforma-se, então, numa espécie de zona neutra da leitura — um limbo entre a intenção e a ação. É o lugar onde o livro repousa quando já não é novidade, mas ainda não foi abandonado. Um território de transição, onde a leitura é adiada. Indefinidamente?
A crítica mais comum — e talvez mais injusta — é considerar esse gesto um fracasso. Mas há outro olhar possível: talvez o valor de um livro não resida apenas na sua leitura, mas na ideia de que pode, a qualquer momento, ser lido. O livro da mesa de cabeceira representa o desejo de continuar a aprender, a sentir, a crescer. Mesmo que o dia nunca chegue.
O livro da mesa de cabeceira é um ritual contemporâneo. Um símbolo do modo como nos relacionamos com o tempo, com o saber e connosco próprios. Um gesto que diz: «Ainda acredito que vou ler isto.» E essa crença, por si só, é já literatura em potência.
Por Analita Alves dos Santos, no blogue WOOKACONTE.