WOOKACONTECE: Um bunker austríaco aos olhos de um poeta



AUGARTEN, VIENA

O bunker esquecido pela Segunda Grande Guerra
ficou abandonado aqui neste parque de Viena.
Era muito difícil destruí-lo sem fazer explodir todo o bairro
    à sua volta:
os pequenos lojistas, hoje turcos na maioria,
que todos os verões se vêm sentar no passeio à porta das suas
    lojas,
as crianças que passeiam no parque
trazidas pela mão os carrinhos
por muitas e diversas mães,
o edifício antigo à beira do parque onde Beethoven estreou a
    Sonata Kreutzer,
um bairro inteiro que seria destruído
só por causa de um velho bunker
a que já ninguém dá importância.

E ali ficou, feio de morrer,
coberto de inscrições
«Sex bitte», «Fick dich», coisas assim
Sem audácia nem imaginação.

Um bunker é muito triste quando já nem o medo nos pode dar,
nem uma inscrição original nas paredes,
nem uma sobra de street art,
nem um poema que seja melhor do que este.
Ficou ali. É um memorial daquilo de que se não quer ter
    memória.
e por isso ficou ali.
Ouvi crianças perguntar o que era, para que servia
tão estranho edifício.
«Das Bunker», respondiam mães apressadas,
às vezes morenas com o véu a tapar o cabelo, às vezes louras com
    Longas pernas brancas,
mas todas insensíveis ao gigantesco mono de cimento
abandonado a este parque, a esta vida.


Luís Filipe Castro Mendes, As Manhãs que Não Conheces, Assírio & Alvim, janeiro de 2025, pp. 30-31

WOOKACONTECE: Yukio Mishima: 100 anos do escritor que viveu entre a pena e a espada

Yukio Mishima discursa na varanda do edifício da Força de Auto-Defesa Terrestre do Japão, em Tóquio, antes de se suicidar. Fonte: Wikimedia Commons


Yukio Mishima, uma das figuras mais complexas e fascinantes da literatura japonesa, nasceu em Tóquio a 14 de janeiro de 1925, há exatamente 100 anos. Viveu uma vida intensa, e por vezes aparentemente contraditória, que culminou numa morte dramática e autoinfligida, em nome de um ideal do Japão que já esmorecera. Desiludido com o rumo ocidentalizado que o seu país tomou após a II Guerra Mundial, Mishima guiou-se pelo conceito samurai da harmonia da pena e da espada, em que a pena simboliza o conhecimento e a espada, a força. Isto porque, além de escritor, Mishima ambicionava tornar-se um homem de ação.

Em 1970, aos 45 anos, Yukio Mishima já havia publicado 33 romances, 50 peças de teatro, 25 compilações de histórias curtas e pelo menos 35 livros de ensaios, e tinha sido indicado por quatro vezes ao Nobel da Literatura. O seu 34º romance, o fim de uma tetralogia, já estava concluído. O que aconteceu, então, para que tivesse decidido pôr termo à sua vida, num dos episódios mais marcantes da história cultural contemporânea?
Quatro anos antes, em 1966, o escritor dissera numa entrevista: «Considero que a ideia de que alguém possa viver apenas para si próprio é manifestamente vulgar, porque temos ideais. Só podemos agir em nome de algo». E acrescentou: «Rezo por uma morte honrosa, uma morte em nome de uma causa». Essa causa, encontrou-a em vida…

UMA PROFUNDA DEVOÇÃO PELA CULTURA TRADICIONAL JAPONESA
Yukio Mishima nasceu com o nome de Kimitake Hiraoka em 1925, em Tóquio, e demonstrou desde muito cedo uma grande sensibilidade pelo que o rodeava, o que se manifestaria nas suas obras como um profundo interesse pela condição humana e pela mente. Criado no seio de uma família de samurais no Japão pré-guerra, que foi perdendo o seu estatuto, Mishima valorizava profundamente o dever, a honra e a tradição. Cresceu sob a influência de uma avó dominadora, que o introduziu na literatura clássica japonesa e no ethos dos samurais.
Num Japão em transformação, a sua vida e educação foram marcadas por privilégios e tumultos – era uma criança doente e foi muitas vezes afastado dos seus pares – que resultariam nas múltiplas personas que retrataria nos seus romances. Desde cedo, demonstrou um talento extraordinário para a escrita, publicando sua primeira obra aos 16 anos. Após estudar Direito e trabalhar e brevemente no Ministério das Finanças, decidiu dedicar-se completamente à literatura, tendo como influências literárias Oscar Wilde e Rainer Maria Rilke. A sua intensa autodisciplina resultou na sua prática de escrever desde a meia-noite até ao amanhecer.
Mishima tinha uma profunda devoção pela cultura tradicional japonesa, especialmente pelo bushido, o código de honra dos samurais. Ao mesmo tempo, era fascinado pela modernidade e pelo Ocidente – incluindo o bodybuilding e as formas de arte globais – um paradoxo que permeia tanto a sua vida quanto a sua obra. Yukio era um nacionalista declarado que defendia a restauração da tradição imperial e dos valores culturais do Japão, que ele acreditava terem sido corroídos pela ocidentalização e pelo materialismo do pós-guerra. O facto de a sua personalidade pública, meticulosamente elaborada, combinar elementos de celebridade moderna e ideais guerreiros antigos, levou muitos a questionarem-se até que ponto a sua vida era uma atuação. Mas poucas personalidades levaram tão a sério as suas convicções.

O ESCRITOR QUE FORMOU E COMANDOU UMA MILÍCIA PRIVADA DE SAMURAIS
Mishima sentia-se profundamente atraído pelo patriotismo austero e pelo espírito marcial do Japão do passado, algo que contrastava com a sociedade japonesa do pós-guerra. Mas isso não significa que ele próprio não se sentisse dividido: embora mantivesse um estilo de vida privado essencialmente ocidental, o que o indignava e não aceitava era a imitação que o Japão fazia do Ocidente.
A sua entrega a estes ideais era tal que, após se ter dedicado intensamente às artes milenares japonesas do karaté e do kendo, formou uma milícia privada, a Tatenokai (Sociedade do Escudo), não sem gerar controvérsia. Este grupo militar era composto por jovens dedicados aos valores tradicionais japoneses, e que seguiam fielmente o comando de Mishima. A Tatenokai simbolizava o desejo de preservar o espírito marcial japonês e de ajudar a proteger o imperador (o símbolo da cultura japonesa) em caso de revolta da esquerda ou de um ataque comunista. Em última análise, visava reavivar o espírito samurai no Japão moderno.

DO GOLPE MILITAR FALHADO AO SEPUKKU, O SUICÍDIO RITUAL
Os milicianos da Tatenokai recebiam treino das Forças de Autodefesa do Japão, as forças armadas do país, já que o governo japonês permitia e apoiava a sua existência. Mas Mishima tinha planos muito bem definidos, e quis ir mais longe.
Yukio Mishima era o romancista vivo mais famoso do Japão quando, em 25 de novembro de 1970, se dirigiu ao quartel-general da Força de Autodefesa, em Tóquio, com quatro membros da Tatenokai, raptou o comandante, mandou-o reunir a guarnição e tentou dar início a um golpe de Estado. Na varanda do edifício, elegantemente vestido com um traje militar, fez um discurso dirigido aos soldados reunidos no pátio, exortando-os a revoltarem-se num golpe de Estado. Insurgiu-se contra o Estado e a Constituição apoiados pelos Estados Unidos, repreendeu os soldados pela sua submissão e desafiou-os a devolver ao Imperador a sua posição anterior à guerra como deus vivo e líder nacional. Os soldados, que começaram por ouvi-lo, depressa abafaram o discurso de Mishima com vaias, insultando-o. O seu apelo foi recebido com escárnio e desdém e a sua tentativa de golpe simbólico fracassou. Mishima voltou para dentro, dizendo: «Acho que não me ouviram». Decidido, prosseguiu com o seu plano derradeiro, que preparava já há um ano. Ajoelhou-se e cometeu sepukku, o ritual de suicídio dos samurais, encerrando dramaticamente sua vida aos 45 anos. Ao seu lado, Masakatsu Morita, o líder espiritual da milícia, fez o mesmo. Ninguém morrera de sepukku desde os últimos dias da II Guerra Mundial. O dia do fim chocante e dramático de Mishima foi também aquele em que terminou o último volume da tetralogia do Mar da Fertilidade, cujo manuscrito entregar ao seu editor nessa manhã. Entregava-se, sem assuntos pendentes, à posteridade.

UMA OBRA LITERÁRIA BRILHANTE E PROFÍCUA QUE ESMAGOU TABUS
Apesar de todas estas controvérsias, o génio literário de Mishima permanece inegável e as suas obras são consideradas das mais notáveis da literatura japonesa. Explorando a natureza humana e rebelando-se regras e normas da sociedade, a obra de Mishima funciona como uma janela para a sua própria mente e para o espírito japonês, sendo um testemunho de intelecto e omnipotência.
O escritor explorou, com ousadia, a angústia existencial do coração humano, não deixando de fora conceitos tabu, à época, como a sexualidade e o homoerotismo, a obsessão, o sadomasoquismo e a interação entre beleza, brutalidade, violência e morte.
O interesse marcado de Mishima pela pela tradição cultural japonesa levou-o a escrever também, com uma capacidade única entre os seus pares, no género das peças clássicas Kabuki e Noh. Além do seu estilo, ornamentado e meticulosamente trabalhado, o sucesso de Mishima deveu-se também à sua eficácia em captar o sentimento de vazio e desespero que caracterizou muitos japoneses durante o período pós-guerra. Destacamos, abaixo, algumas das obras mais notáveis de Yukio Mishina, entre as dezenas de obras que deixou, dos romances, contos e peças de teatro aos ensaios literários e guiões de cinema.



Foi o primeiro livro que Mishima escreveu e estabeleceu a sua reputação no Japão em 1949, quando tinha apenas 24 anos, graças ao seu brilhantismo estilístico e à abordagem de temas tabus. Nesta obra semiautobiográfica, faz o seu retrato de artista enquanto jovem que cresce num Japão que vai para a guerra e sofre a derrota, e aceita o facto de a descoberta da sua homossexualidade não estar sintonizada com a sensibilidade da maioria dos outros jovens. Tentando evitar a repressão e o conformismo, o protagonista sente-se sufocado pelas normas sociais e tem de assumir uma máscara para se proteger. Identidade, género e sexualidade fundem-se nesta viagem de autodescoberta deste jovem com tendências niilistas e um desejo de encontrar autenticidade e significado.



o Templo Dourado é a história de Mizoguchi, um confuso jovem acólito de um templo budista. O seu desejo de encontrar a beleza inata na sua própria perceção da realidade tornou-o obcecado pela beleza do templo. Numa busca pela transcendência e pela satisfação de desejos espirituais, vive em tal angústia e desespero que acaba por atear fogo ao templo, enquanto reflete sobre o conflito entre beleza e destruição.
Mishima inspirou-se numa ocorrência real: em 1950, o Pavilhão Dourado de três andares em forma de quadrado, um tesouro nacional do Templo Kinkakuji em Quioto, foi incendiado por um discípulo do templo, de 22 anos, Hayashi Kon. Depois de recolher o máximo de informação possível, Yukio Mishima debruçou-se sobre o mundo metafísico de Hayashi, e a sua escrita transporta-nos para um mundo diferente – aquele que era percebido pelo incendiário esquizofrénico.



O romance começa com dois protagonistas: Noboru, um adolescente que questiona o mundo e a realidade, cujo grupo de amigos rejeita os valores do mundo dos adultos; e Ryuji, um marinheiro que simboliza a libertação e as aventuras, que entra na vida de Noboru quando se envolve com a mãe deste. O rapaz fascina-se com as histórias de façanhas no alto-mar, com a coragem e a calma daquele homem, e com a solidez do seu corpo. Mas quando o marinheiro desilude os ideais fundamentalistas do grupo de adolescentes, estes montam um plano de vingança. As partes pungentes do romance sobre uma geração traumatizada pelas consequências da guerra e a procura de beleza e autenticidade, assim como da honra perdida do Japão, continuam a ser os pontos-chave nesta obra literária.



A última obra de Mishima, a tetralogia Mar da Fecundidade, escrita entre 1965 e1970, é um épico em quatro volumes que é considerado por muitos como a sua realização mais duradoura. Os seus quatro romances separados Neve de Primavera, Cavalos em Fuga, O Templo da Alvorada e O Declínio do do Anjo, decorrem no Japão e cobrem o período entre 1912 e 1960.Cada um deles retrata uma reencarnação diferente do mesmo ser: como um jovem aristocrata em 1912, como um fanático político nos anos 1930, como uma princesa tailandesa antes e depois da II Guerra Mundial, e como um jovem órfão malvado nos anos 1960. Estes livros comunicam eficazmente a obcessão crescente de Mishima pelo sangue, pela morte e pelo suicídio, o seu interesse por personalidades auto-destrutivas e a sua rejeição da esterilidade da vida moderna.


***

Yukio Mishima é uma figura universal cuja obra transcende fronteiras culturais e temporais. Os seus romances são tipicamente japoneses na sua apreciação sensorial e imaginativa dos elementos naturais, mas os seus enredos sólidos e bem construídos, a sua análise psicológica profunda e um certo humor discreto ajudaram a torná-los muito lidos noutros países.
Com uma habilidade ímpar de unir beleza estilística, intensidade emocional e profundidade filosófica, Mishima influenciou gerações de escritores em todo o mundo. Quase 50 anos após a sua morte, permanece um exemplo de como a literatura pode capturar a essência de uma época e, ao mesmo tempo, ser intemporal.




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Os maratonistas da leitura: ler muito ou ler bem?

 


Partilho este artigo de opinião de João Salazar Braga para o Jornal Expresso: «Os maratonistas da leitura: ler muito ou ler bem?» 👇

"(...) A leitura tornou-se num jogo e é dos competitivos. A sua gamificação é real e espera-se que se intensifique, porque convoca constantemente novos leitores, que aparentemente têm mais satisfação em superar os seus próprios números do que em ler um livro sem pressas ou pressões, apenas pelo prazer da leitura, que se quer bem demorado.

Ler deve descansar e não é obrigatoriamente um jogo. Trata-se de uma atividade quase sempre lúdica, que obedece a costumes muito próprios, muitas vezes inaplicáveis a outros passatempos. A perspetiva de acabar o ano com 30 ou 40 livros lidos é maravilhosa, mas a ideia de esses 30 ou 40 livros resultarem de uma obrigação autoimposta é – e permitam-me a tomada de posição – uma grandessíssima chatice: decorre de uma obsessão que, por sua vez, gera uma obrigação contínua, que pesa durante a leitura e que incomoda o leitor que lê para estar verdadeiramente despreocupado."


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Aproveito e remeto para outro artigo de opinião, desta vez de Bolívar Torres para O Globo «'Atletas' da leitura: entenda por que maratonas e sprints literários cresceram na pandemia».



📌 Este assunto chamou-me a atenção porque participo em desafios literários. Gosto de aliar o prazer da leitura com os objetivos dos desafios literários, mas não sou obcecada em concluí-los todos. Felizmente, a quantidade de livros por ler na minha estante não é assim tão grande porque tenho conseguido ir lendo com uma certa rotina. Mas aceito e compreendo que para algumas pessoas a leitura se tenha gamificado, talvez por serem mais competitivas e gostarem de desafios, ou simplesmente porque se sentem dessa forma motivadas para ler.
No geral, o alerta dado nestes dois artigos de opinião passa pelo desprazer em ler e pela pressão que esses leitores-maratonistas sentem para cumprir objetivos. Temos de ler, sim, mas com tempo e qualidade. 💝


Primeira Mensagem do Ano



Bom Ano Novo!
Chegou 2025 com mais momentos de leitura! 😄 A meta será igual à do ano anterior: ler 20 livros até ao final do ano, participar em desafios literários e tentar comprar livros para completar as minhas coleções. Ai que bom! 😊 It will be awesome!

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