Por Zé Livreiro
Os retellings conquistaram a literatura contemporânea como formas criativas de revisitar os clássicos. Mais do que simples interpretações de uma história, estes livros são exercícios de escuta que procuram, acima de tudo, perceber o que ficou por dizer no texto original, quem foi deixado de fora e que novas leituras podem surgir à luz da realidade em que vivemos. Madeline Miller, Barbara Kingsolver, Pat Barker, Percival Everett e Sandra Newman são autores que, ao reinventarem obras canónicas, deram voz a personagens esquecidas, trouxeram os enredos para os dias de hoje e abriram espaço a novas formas de contar as mesmas histórias.
Em James, Percival Everett resgata do silêncio uma das figuras mais marcantes e ignoradas da literatura mundial. Jim é um escravo assombrado pela possibilidade de ser vendido, enviado para longe e separado para sempre da mulher e da filha. Decide, por isso, esconder-se. É então que a sua vida se cruza com a de um jovem, também em fuga, que fingiu a própria morte para escapar ao pai violento. Juntos, descem o Mississípi numa jangada em busca de liberdade e de uma vida melhor. O jovem é Huckleberry Finn, herói consagrado da literatura americana; e Jim será o seu companheiro de viagem. Everett pegou neste clássico de Mark Twain e reimaginou-o a partir de um novo ponto de vista, profundamente marcado pela consciência racial do século XXI. Durante a ação de As Aventuras de Hucleberry Finn, Jim é uma personagem pouco desenvolvida, cuja única função é a de acompanhar Huck na sua viagem de autodescoberta. Não há oportunidade para conhecermos verdadeiramente este homem que, apesar de ter muitos sonhos, medos e desejos, nunca é realmente ouvido nem compreendido. Tudo o que sabemos sobre ele é filtrado pelos olhos de Huck mas, neste retelling, é-lhe concedida a possibilidade de ser o protagonista da sua própria história e agente ativo na busca da tão desejada liberdade.
A discussão sobre a natureza da relação entre Aquiles e Pátroclo atravessa séculos e nunca chegou a um consenso. Há quem considere que os dois heróis da Ilíada eram amantes e quem os veja apenas como amigos e companheiros de luta. Madeline Miller defende a primeira hipótese e escreveu O Canto de Aquiles como forma de validar essa possibilidade. Ao dar ênfase a pequenos pormenores e transformando algumas omissões em possibilidades narrativas, a escritora põe de lado a dimensão épica da Ilíada e coloca as emoções no centro da história. Miller narra esta lenda a partir do ponto de vista de Pátroclo, uma figura secundária na poesia de Homero a quem atribui profundidade emocional e uma sensibilidade que contrastam com o tom heroico da obra original. Nesta versão, o amor entre ele e Aquiles é o centro gravitacional da narrativa, e não um detalhe à margem da guerra. Aquiles, visto por todos como um guerreiro irascível e inabalável, nesta versão surge como um jovem vulnerável, movido mais pela perda do que pela glória. Ao recontar a história através deste prisma, Miller não nega a tragédia intrínseca às duas personagens, mas humaniza-a. Num texto em que os sentimentos ferem mais do que espadas e lanças, O Canto de Aquiles é, antes de mais, uma ode ao amor impossível, que nasce na juventude, cresce em segredo e resiste, mesmo perante o destino mais cruel.
Pat Barker também se debruçou sobre a Ilíada, mas abordou-a de forma diferente. Em O Silêncio das Mulheres, a atenção recai nas figuras mais esquecidas do épico grego: as mulheres. Esposas, amantes, rainhas e escravas ganham uma preponderância inédita nesta obra, sobrepondo-se a nomes mais conhecidos. Aquiles, Páris e Agamémnon são relegados para segundo plano e acompanhamos a história da guerra de Tróia do ponto de vista de Briseida, uma mulher que na ação da Ilíada é pouco mais do que um objeto de disputa entre homens. Barker apresenta-nos uma protagonista inteligente, lúcida e profundamente humana, que observa, sofre e questiona a violência que a rodeia. A guerra de Tróia, que nos foi vendida como palco de honra e glória, revela-se neste retelling um cenário de brutalidade, trauma e perda, sobretudo para as mulheres capturadas como espólio. Ao contrário do tom lírico e quase mítico de O Canto de Aquiles, O Silêncio das Mulheres aposta numa linguagem mais crua, despojada de romantismo, para nos confrontar com a realidade nua e dura da guerra. Pat Barker não se limita a recontar a Ilíada, desafia-a, e fá-lo com um olhar afiado, empático e corajoso.
Se Charles Dickens tivesse nascido nos Estados Unidos do século XXI, é provável que, em vez de David Copperfield, tivesse criado Demon Copperhead — a reinvenção contemporânea da sua obra pelas mãos de Barbara Kingsolver. As semelhanças entre as duas personagens não terminam na similitude dos apelidos. São ambos rapazes órfãos, vítimas de um sistema social falhado, que conhecem a negligência, a pobreza e a violência desde tenra idade. Enquanto David luta para encontrar o seu lugar na Inglaterra vitoriana, Demon enfrenta os desafios de uma América contemporânea marcada pela epidemia dos opiáceos, lares adotivos precários e um colapso social profundo. Ambos narram as suas histórias na primeira pessoa, oferecendo-nos um retrato íntimo das suas dores e resistências. Kingsolver não só atualiza o cenário criado por Dickens, como reinventa os seus arquétipos (o padrasto cruel, o amigo traiçoeiro, o amor frágil), para refletir as realidades atuais. Demon Copperhead é um tributo poderoso e contemporâneo ao clássico de Dickens e prova que certas histórias são universais, independentemente do tempo ou lugar em que acontecem.
As distopias também merecem reinterpretações, e Sandra Newman, com Julia, oferece uma leitura diferente de 1984. Sem perder o tom sombrio e inquietante do original, Julia, reconta a célebre distopia de Orwell a partir da perspetiva daquela que era apenas uma nota de rodapé na jornada malfadada de Winston Smith. Aqui, Julia não é somente a amante rebelde, é a protagonista absoluta, com voz, motivações e um passado que nos permite perceber as ambiguidades do seu papel no regime do Grande Irmão. A escritora norte-americana mergulha na psicologia desta personagem tantas vezes ignorada e mostra-nos uma mulher complexa, astuta e profundamente consciente das regras do jogo que precisa de jogar para sobreviver. O que Newman propõe não é apenas uma inversão de género, mas um novo olhar sobre o sistema opressor retratado por Orwell, menos centrado na vigilância externa e mais atento às microestruturas de poder, ao corpo feminino como território político e à manipulação das emoções como instrumento de controlo.
Os grandes clássicos não são monumentos intocáveis e inertes. O que os torna capazes de moldar sociedades e incitar novas formas de pensar é serem feitos de matéria viva, aberta à transformação. São cartas escritas ao futuro, e os retellings são as respostas — críticas, apaixonadas e conscientes — de quem escolhe relê-las com novos olhos.
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