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Lídia Jorge - Foto © Frank_Ferville |
Lídia Jorge tem aquela capacidade rara reservada aos grandes escritores: uma compreensão profunda do ser humano, através do seu compromisso inabalável com o poder da palavra escrita. Acredita no potencial transformador da narração das histórias. A literatura, afirma, segue um caminho constante, como uma espécie de sombra branca, e vai dulcificando as coisas. Criar traços de beleza dá-lhe uma grande sensação de liberdade.
Recordamos, agora, a entrevista que a autora nos concedeu em 2024 (e publicada na revista wookacontece n.º 11), em torno do seu mais recente romance, Misericórdia. É uma obra que nos deslumbra e desarma, que a autora escreveu a pedido da sua mãe, e que traça um retrato universal da condição humana, através do qual sentiu o fulgor da existência.
Numa exploração ímpar da dinâmica geracional e dos fios invisíveis que nos unem, a escritora explora o delicado equilíbrio entre a alegria da existência e as nuances do envelhecimento. O brilhantismo deste romance conquistou, entre outras distinções, o Pémio Médicis Étranger, concedido pela primeira vez a uma autora de língua portuguesa.
Escreveu Misericórdia a pedido da sua mãe. Alguma vez tinha escrito um livro a pedido de alguém?
Não, nunca imaginei que alguma vez isso iria acontecer e que eu iria obedecer a esse repto. Comecei a escrever como uma homenagem à minha mãe, mas, depois, o livro libertou-se dessa homenagem e de certa forma foi mais alguma coisa. Acabei-o com a sensação de que tinha feito uma justiça, de que o livro, para além da alegria de eu estar a escrever [apesar de estar] a meio de um luto, fazia uma compensação a uma geração e a um tipo de pessoa que se torna invisível à medida que o tempo passa. O facto de dar essa visibilidade a algo que não era só uma figura, mas um grande coletivo, fez com que eu, no final, tivesse achado que valeu a pena responder a esse pedido.
O que aprendeu no processo de escrita sobre a condição dos idosos? No fim, pesa mais a compaixão, a «misericórdia» em momentos como no capítulo homónimo no livro, ou o sentimento de impotência perante a finitude da vida?
Não, foi muito mais. O que eu senti ao escrever foi o fulgor da existência, a possibilidade de repensar numa experiência de três anos que eu tinha tido no meio dos idosos, e que me deu ideia de que ali, de facto, a vida está em todo o seu fulgor. Ao contrário do que se pensa, eu acho que a vida não fica diminuída; em certa medida, ela fica aumentada por aquilo que se viveu e pela síntese que as pessoas começam a fazer no final da vida. Eu percebi que, ao envelhecer, há uma perda e, ao mesmo tempo, há um ganho. Só que, como a perda é muito forte, o ganho, em geral, fica apagado em relação à perda.
Misericórdia é, como disse já, uma história de resistência, de uma mulher limitada pelo corpo mas livre pelo espírito. A liberdade foi sempre uma causa maior para si?
Para mim, pessoalmente, sim, mas não é uma liberdade apenas abstrata, ainda que, como ideal, eu acho que é alguma coisa de supremo. Diz-se “a santa liberdade”, o que é uma coisa curiosa, pois contém uma espécie de contradição. Mas a verdade é que a liberdade, como um absoluto, na prática, não existe. Nós nunca seremos seres de liberdade absoluta, nunca – somos condicionados de muitas maneiras. Depois, há a liberdade cívica, que é dada pelo direito que advém do direito à educação, à justiça cívica. Enfim, são os bens que o Estado nos dá mas, ontologicamente, nós nunca somos completamente livres. É alguma coisa para que se tende e se aspira, mas a prática é uma fricção contra a liberdade. Onde fica a liberdade de uma pessoa que caiu, que tem dificuldade em andar? É uma liberdade interior que ela tem ou não tem. O mesmo podemos dizer das liberdades cívicas. Eu vejo um discurso muitas vezes erróneo. As pessoas confundem aquilo que é o desejo da liberdade, que é uma abstração forte que nos faz mover montanhas, com a condição real, que tem sempre limitações. Mas podemos dizer que somos livres. Eu vivi a minha juventude em tempos de ditadura, portanto, hoje, em que as liberdades fundamentais cívicas estão garantidas, admiro-me como as pessoas não as valorizam, [pois são] uma condicionante fundamental para a liberdade interior.
Neste livro, além de uma história de envelhecimento e de morte, de dor, existe também a comédia de pequenas situações – quando olhamos para a vida com clarividência, encontramos essa capacidade de nos rirmos (de nós mesmos, até)?
Eu acho que sim, que podemos encontrar essa capacidade. É um exercício, sobretudo, de inteligência, que se faz. Uma pessoa inteligente é capaz de olhar para si como um outro, e dessa forma coloca-se dentro de um coletivo. Vai aprendendo a desvalorizar a sua limitação, a sua dor, e pensa sempre: eu sou um entre outros. É meio caminho andado para que a pessoa não se olhe como um centro, não se leve demasiado a sério, não se veja como um absoluto. Quando vejo pessoas que são capazes de ironizar acerca de si próprias encontro, nessas pessoas, inteligência.
O seu fascínio pela escrita continua igual ao que sentia quando tudo começou, há mais de três décadas?
Sim, completamente, porque o fascínio pela escrita é algo que vem antes da publicação e que percorre a minha vida toda. Não tem pausa, nem repouso.
Em boa parte da sua obra literária dedicou-se a escrever sobre o tempo em que uma sociedade livre emergiu após a queda de um império. Como vê hoje a sociedade portuguesa?
A sociedade portuguesa é uma espécie de declinação, uma forma de modernidade do mundo atual. Temos as nossas especificidades, e dentro delas, a pior é que existe um país muito pobre, com pouco contacto com aqueles que se desenvolveram. Temos várias camadas sociais e, infelizmente, a taxa de pobreza do nosso país continua superior quando comparada com outros países desenvolvidos. Continuamos a ser um país de identidade europeia, um dos países com democracia instaurada no final do século XX. Porém, estamos sujeitos aos movimentos da História e da atualidade, o que também nos fragiliza em alguns aspectos. Por exemplo, demoramos muito a ter uma extrema direita. Pergunto-me até onde irá a extrema direita em Portugal, um país com taxa de analfabetismo elevada, não só o analfabetismo de não saber ler e escrever, como o de todos aqueles que não ultrapassaram a instrução primária. Essa é, para mim, a grande questão da atualidade em Portugal. Em Espanha, a extrema direita ainda está contida, não fez estragos que considere absolutos. Na Europa, apesar da ameaça, também ainda não causou estragos. Mas em Portugal, um país com grandes fragilidades do ponto de vista da instrução, pergunto-me, quando rompido esse dique, de que tamanho será a avalanche que aí vem.
Com a sua obra, contribui para o poder da literatura, que tanto tem defendido. Conseguirá a literatura vencer a batalha contra a desinformação?
A literatura nunca vence uma batalha de forma clara porque atua num local meio obscuro da nossa existência. A literatura modifica-nos, mas a alteração não ocorre do dia para a noite. Com a aceleração do progresso tecnológico, dos hábitos contemporâneos, e com a avidez de mudança, olhamos para a literatura e podemos achar que caminha de forma lenta. Eu acho que a literatura segue um caminho constante, como uma espécie de sombra branca que acompanha a sociedade, mas que não conseguimos medir em termos de importância. A literatura vai dulcificando as coisas, demonstra como a vida é complexa e nunca deve ser tomada como linear. Considero que o leitor está muito mais apetrechado para fazer as suas escolhas privadas e cívicas do que o não leitor. Naturalmente, é muito difícil fazer um estudo sociológico que correlacione os leitores e as suas decisões, mas fico convencida disso mesmo porque, em encontros com leitores, verifico uma sensibilidade para a decisão muito diferente dos locais onde encontro não leitores. Os leitores, são mais ponderados, agem sobre um tabuleiro onde há muito mais peças e, portanto, escolhem com mais critério. Os leitores têm compaixão porque a literatura cria a visão da alteridade, olhar pelo espelho de outro. Um leitor que não se ficou pela literatura infantil adquire um enriquecimento enorme que lhe permite colocar-se no papel do outro, tomando decisões por um coletivo. Considero isso um benefício muito grande, um elemento diferenciador.
Tem sempre um projeto novo em mente? Qual será o próximo?
Como tenho vários é difícil falar deles. Pretendo terminar um livro que estava a escrever quando surgiu a ideia para o Misericórdia. Tenciono voltar a trabalhar nele, ainda que tenha alguma difuldade, porque se passou muita coisa entretanto: [sofremos] uma pandemia, rebentaram duas guerras perto de nós – sobretudo, a guerra na Ucrânia trouxe-me grandes problemas perante o que eram as minhas convicções. Foi um grande estremecimento e continua a ser. Agora, eu olho para o projeto que tinha em mãos e é como se tudo estivesse desatualizado, como se, neste momento, eu me encontre muito mais adulta do que era quando comecei a escrever esse livro. A pandemia foi tocante, não só pessoalmente, mas de uma forma global. Pela primeira vez, todos enfrentamos, com uma espécie de unidade, um inimigo que não era humano e que não surgia da maldade, mau comportamento ou indiferença dos humanos; combatemos em conjunto, mesmo contra a desinformação. Esta situação foi também uma tomada de consciência de que pode existir uma catástrofe ecológica onde as vítimas são os seres humanos. Posteriormente, a guerra na Ucrânia quebrou a ilusão de que havia um equilíbrio. Era só uma ilusão, mas nós vivíamos nessa ilusão. Foi duro. A própria guerra em Gaza é um derivado do desequilíbrio da guerra entre os imperialismos. E, como vemos, todos os imperialismos são absolutamente sanguinários, quer de um lado, quer do outro. Uns mais agressivos, outros mais cínicos talvez, mas ambos idênticos no objetivo principal, e essa é uma lição muito forte dos nossos dias. Portanto, não sei como retomar esse projeto.
Sente-se feliz quando escreve?
Sinto-me com entusiasmo, que é algo diferente. Entusiasmo, em grego, significa “estar com os deuses”, o que não deixa de ser curioso. Para mim, isso é felicidade. Essa sensação de poder, ainda que mínimo, de manejar palavras, ideias, uma narrativa. Uma criação mínima, mas uma criação. E isso ser feito com a ideia de que se pode criar traços de beleza, criar algo que supera o trivial. Isso dá-me uma sensação de liberdade, de grande libertação, a ideia de que a vida não nos amarra. Escrever é muito semelhante a ler: é o processo anterior, mas tem muito a ver com a leitura. Ainda há pouco ouvi ler um poema sobre a morte, sobre os desaparecidos. E, no entanto, foi uma sensação de alegria e de beleza tão grande que, quando a pessoa acaba de ouvir a leitura de um poema assim, é como se os pés se levantassem do chão. O que as pessoas dizem ser uma experiência filosoficamente estética é, no fundo, uma experiência de libertação da vida. A literatura faz isso. A poesia, em pequenas parcelas, faz isso. Há páginas absolutamente maravilhosas. A Herta Müller, no livro Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo, tem pequenos capítulos que, lidos em voz alta, são uma libertação, um dom da vida.
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