WOOKACONTECE: A Vida dos Escritores

Interessa o que escrevem, mas pelos vistos também interessa quem são. Não é de agora: já há muito se busca a vida de quem inventa vidas. Eles inventam personagens, histórias, versos, e os biógrafos tentam descortinar quem foram.



Camões nasceu há 500 anos. Dele, conhecem-se as palavras. De um homem cujo nome todos os portugueses conhecem, de um poeta cujos versos são lembrados, é espantoso o quão pouco parece que se sabe. Salvou-se o que escreveu – tal como Camões salvou o que escreveu da água. E Isabel Rio Novo meteu-se na tarefa hercúlea de descortinar quem foi o poeta máximo da lusofonia.
Com prosa veloz, elegante e sem manias, a biógrafa é também uma das vozes mais relevantes da produção coetânea em Portugal. Além disso, já não é estreante nesta tarefa de ir buscar a vida à fonte, já que já antes escreveu sobre Agustina Bessa Luís. O Poço e a Estrada, publicado em 2019, é um trabalho meticuloso sobre uma das mais importantes autoras portuguesas do século XX, e também das mais profícuas. Romance, conto, ensaio, memória, biografia, peças de teatro, tudo lhe saiu das mãos. Enquanto mostra a autora, Isabel Rio Novo mostra também uma mulher pouco convencional. Tal não espanta quem saiba de onde vem o impulso para escrever. A biógrafa lançou mãos à obra como quem tenta fechar os vazios possíveis. O livro é o resultado de dezenas de entrevistas, consulta de cartas e documentários, recolha de testemunhos. Entre a biografia e a obra, há sempre uma ponte. O leitor atravessa-a a cada página, ligando ambos os lados, e lendo uma biografia de forma escorreita.
Enfim, depois de Agustina, veio o poeta maior. O livro Fortuna, Caso, Tempo e Sorte passou cinco anos no forno. Numa biografia que se lê como um romance – uma epopeia, vá –, vamos ligando o homem ao poeta. Dos versos vai-se à vida, e vice-versa. O trabalho é de fundo, a bibliografia é extensa, mas o livro, que é longo, é lido de forma escorreita. Parece que está lá tudo, até o olho perdido, e por isso Camões passa a Luís. O livro parece colmatar o que faltava: conhecimento estruturado, que fosse buscar a vida por trás da obra, não raras vezes explicando-a.
Enquanto mergulha no homem que é poeta, ou no poeta que afinal também é homem, na medida em que é mais conhecido pelo que escreveu do que pelo que fez ou foi, Isabel Rio Novo mostra o criador em toda a sua dimensão. Afinal, para os versos que fez – em especial, n'Os Lusíadas –, muito contribuíram as voltas dadas: o nosso poeta maior não se fez só em bibliotecas.



Tenho sempre a ideia de que José Cardoso Pires foi um amigo que não cheguei a conhecer. Entusiasma-me a Lisboa que descreveu, embora, em boa verdade, talvez só na literatura. Não só é mais do que nada como já é quase tudo. Tantas vezes passeei pelo Cais do Sodré ouvindo o seu sussurro vindo do British Bar. Quem lá passava via grupos, via copos: eu via-o escrever como se ainda lá estivesse. E, irremediavelmente, sentia remorsos de estar a ver a vida em vez de estar em casa a escrever sobre ela. José Cardoso Pires é um dos grandes da literatura, e um dos meus maiores. Será também um dos maiores de Bruno Vieira Amaral, pelo menos a julgar pela forma como escreveu sobre ele. Ao ler o O Integrado Marginal, o leitor viaja entre literatura e autor, vê texto e contexto ao mesmo tempo, vê de que forma se faz um escritor. Não será surpresa que não lhe faltem dúvidas na hora de criar.




Os anos passam e parece que Natália Correia não chega a envelhecer. Em 2024, até as suas intervenções no Parlamento parecem atuais. É difícil esquecer o poema escrito à pressa para responder a João Morgado num debate sobre a interrupção voluntária da gravidez. Natália era densa, completa, complexa, uma das maiores em Portugal no século XX. O que produzia era simbólico e forte, obrigando o leitor a ir à caça dos sentidos. Filipa Martins meteu-se nisto de escrever a vida de uma das mais inquietas autoras da história da literatura portuguesa. O trabalho, também meticuloso, vai-lhe à arte e ao carisma. O Dever de Deslumbrar faz o mesmo que a biografa: deslumbra quem o lê.




Biografar vivos há-de ser pior do que biografar mortos. Maria teresa Horta foi censurada e espancada, não pediu licença a ninguém, não baixou a voz. Pelo contrário, após a confusão que deu o livro Minha Senhora de Mim, em 1971, escreveu Novas Cartas Portuguesas, com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. Conhecê-la é, por isso, conhecer também uma parte fundamental da nossa História. O seu percurso a sós diz-nos muito sobre os tempos do Estado Novo e a forma de agir do lápis azul: não só em relação à literatura, mas também em relação à produção simbólica vinda de mulheres. Escrever a sua vida de forma simpática para o leitor é que há-de ter sido o diabo, mas aqui está o resultado-